<
volver
Publicación
Carta Asiática
Brasil
e China: novas perspectivas. Resenha do Tratado da Eficácia
Gilmar
Masiero
Tratado da Eficácia, de François Jullien
A crise financeira no Sudeste Asiático ocorreu pouco
depois da publicação de um relatório
anual do Banco Mundial tendo como tema o "East Asian
Miracle". A instituição, nessa obra, pela
primeira vez na história das instituições
financeiras multilaterais, reconhecia inúmeras especificidades
nos modelos de desenvolvimento asiáticos e, de modo
bastante evidente, reconhecia desvios pragmáticos com
relação ao ideal competitivo ocidental como
aceitáveis.
A crise jogou imensa sombra sobre esse trabalho do Banco Mundial
e, muito rapidamente, a imprensa internacional deu vazão
a uma visão quase única: os desvios asiáticos
seriam a chave de compreensão de um fracasso tão
extraordinário.
Desde "A Espada e o Crisântemo", durante a
Segunda Guerra, os episódios de contraponto cultural
entre Oriente e Ocidente assumiram ares de confronto civilizatório
e, ao mesmo tempo, na continuidade de um esforço amplo
de pesquisa e aprendizado mútuo, gerando praticamente
ao mesmo tempo surtos de "orientalismo" no Ocidente
e "ocidentalismo" no Oriente.
Em vários momentos, essa harmonia das semi-esferas
deu-se sob identidades igualmente perversas e despóticas:
a Guerra Fria foi um jogo de espelhos onde até agora
estão sob discussão (aliás, cada vez
mais crítica) das teses de um Francis Fukuyama que
chegou a imaginar uma supremacia finalística do liberalismo
ocidental. E, mais uma vez num jogo de espelhos, o proponente
da tese é um "asiático".
A rede entre os dois extremos do planeta também tem
propiciado o amadurecimento de níveis crescentemente
complexos e sutis de identificação mútua.
A globalização não anula as diferenças,
em todos os muitíssimos setores onde elas podem manifestar-se.
Entre as conquistas do espírito que se tornam referência,
surge agora o "Tratado da Eficácia", de François
Jullien, publicado em tradução de Paulo Neves,
pela editora 34.
A essa altura, tornou-se praticamente impossível saber,
na avaliação das relações entre
Ásia e Ocidente, onde começa a economia, onde
começa a estratégia, num quadro de geoeconomia
política. Essa geopolítica penetra tanto os
manuais de "administração japonesa"
ou aplicação de Sun Tzu ("A Arte da Guerra")
ao mundo dos negócios quanto na metáfora de
uma "guerra econômica" como continuação,
por outros meios, da guerra que se encerrou com as bombas
atômicas.
A obra de Jullien compara as possíveis familiaridades
entre os mundos da eficácia militar chinesa e ocidental.
O próprio Sun Tzu é avaliado, mas no contexto
de um sistema de referências literárias, filosóficas
e de reflexões estratégicas que desenha um amplo
e profundo retrato da cultura chinesa. O resultado é
uma oportunidade única e das mais raras para entender
um pouco mais este solo pragmático onde a vida à
chinesa ganha sentidos.
No campo ocidental, Aristóteles e, de modo mais geral,
a matriz greco-judaico-cristã é recuperada em
nós simétricos ao retrato oriental, a rigor,
os dois retratos vão sendo simultaneamente traçados
e se refletem um no outro. Ação e processo,
objetividade e contextualidade, tempo linear e sincronia anímica,
princípio da não-contradição e
intersignificação
de yin e yang.
Jullien vai pinçando os elementos-chave que afinal
nos conduzem a uma melhor apreciação não
apenas da mentalidade chinesa, mas da nossa própria
prática de racionalização estratégica.
Antes mesmo de Aristóteles, o mito é por excelência
o palco da narrativa de uma ação, portanto de
um sujeito protagonista. O "logocentrismo" ocidental
é também um "egocentrismo", enquanto
na China o pensamento da situação faz da estratégia
um espaço comum do eu e do não-eu, do ativo
e do passivo, onde o processo e a incerteza têm mais
relevância que a ação e o cálculo
que desenha um plano, um modelo ou ideal.
É portanto aos mais elementares abismos da reflexão
humana que nos leva essa meticulosa comparação
de que é feita o "Tratado da Eficácia"
de François Jullien.
Num momento em que os ajustes econômicos à crise
continuarão tão condicionados pelos sub-solos
culturais quanto estiveram, antes, os "milagres econômicos",
a leitura de uma obra com esse fôlego intelectual é
um bom lembrete de que não há globalização
sem diferenciação e reconhecimento da legitimidade
das diferenças.
No mínimo, é preciso ter consciência de
que a crise atual é antes de mais nada a crise de todos
os modelos, de tal sorte que ninguém pode afirmar "a
priori" ser detentor da receita mais correta. Como a
afirmação de certas receitas costuma ser administrada
à força, é no mínimo um dever
de honestidade intelectual encarar essas "idealizações"
como integrantes de um mesmo desafio civilizacional, hoje
mais duvidoso do que nunca, justamente por haver uma falência
geral dos padrões de eficácia.
Portanto, esta é uma obra que, tão distante
do concreto, é muito oportuna para torná-lo
menos desnorteador.
Tradução de Paulo Neves
editora 34
S.Paulo, 1998
arriba
/ top
<
volver
|